As feridas abertas pelo terremoto do Haiti pareciam implorar cuidado daquelas mãos já “calejadas” pelos pronto-socorros do Brasil. Por isso, enquanto os tamborins eram esquentados para o carnaval brasileiro, duas médicas e uma enfermeira deixaram a folia, suas casas, seus trabalhos, seus filhos e seus amores para trás.
Elas partiram para uma missão voluntária (a primeira em suas carreiras) e descobriram nos escombros da terra devastada que instinto feminino e cuidado materno são “remédios universais”, os mais eficientes para tratar até mesmo dores tão intensas como as de uma amputação.
Tudo começou com um comunicado virtual. Foi o bastante para reunir profissionais de saúde que nunca haviam se visto por uma mesma causa.
A anestesiologista carioca Ellen Pereira estava com a fantasia da Mangueira – escola de samba do seu coração – comprada. Mas desistiu de deixar a cidade Boituva, interior paulista, para desfilar na Sapucaí assim que recebeu o e-mail da Associação Médica Brasileira (AMB).
A mensagem recrutava voluntários para ajudar a resgatar vida na tragédia que, em 12 de janeiro, matou mais de 230 mil pessoas. O mesmo e-mail mexeu com a enfermeira paulista Luciane. Ela tinha o pescoço “ameaçado” pelo limite do prazo para a entrega da tese de doutorado. Esqueceu, no entanto, até o que era Universidade de São Paulo (USP) – faculdade onde estuda – no momento em que viu a convocação na internet.
Mensagem idêntica fez Celina, também anestesiologista, desmarcar os compromissos, pessoais e profissionais, previamente agendados. Após ler o texto no computador, ela só precisou dos olhares de aceitação – e orgulho – dos filhos, de 16 e 18 anos, para deixar Curitiba e correr rumo ao serviço voluntário em meio aos haitianos.
Ellen, Luciane e Celina toparam participar do grupo de 16 profissionais brasileiros que passaram 15 dias cuidando das vítimas do terremoto do Haiti. Sem salário em troca. Em comum, não falam inglês, nem francês (idioma oficial do Haiti) e muito menos o creolle (crioulo) – dialeto local. Por isso, as três partilharam o receio de como seria a comunicação com os sobreviventes haitianos amputados, órfãos, sozinhos e sem moradia. “Faremos mímica?”, cogitou Luciane.
A preocupação com a língua foi companhia durante as 72 horas de viagem, gastas entre o Aeroporto Internacional de São Paulo, de onde embarcaram, até Porto Príncipe, capital haitiana. Mas ao pisar no Haiti, o medo do idioma desapareceu.
O hospital onde elas foram trabalhar fica na cidade de Les Cayes – distante 200 quilômetros de Porto Princípe. Para chegar até lá, o grupo usou uma van coberta pela bandeira brasileira. No caminho, escutaram o povo gritar “Ronaldo, Ronaldo”. O nome do jogador soou como uma senha, interpretada assim pelas médicas e enfermeira: “Sim, nós confiamos em vocês”. Nas 14 horas de viagem pela estrada de terra, rodeada por pedaços de concreto dos bairros destruídos, o que marcou foram os sorrisos que brotavam onde as mulheres pensavam só encontrar tristeza. “Soube ali que nós nos daríamos muito bem”, diz Luciane.
O grupo brasileiro se hospedou no próprio hospital de Les Cayes. Celina, Ellen e Luciane montaram barracas em frente à unidade de saúde. Era ali, sem muito conforto, que dormiram as “cinco horas livres” que tinham diariamente. Em um dia, eram 12 cirurgias, em média. No intervalo entre uma operação e outra, era preciso lavar o chão, arrumar os materiais, esterilizá-los e organizar tudo.
No Haiti não há saneamento básico e nem chuveiro elétrico. O banho, portanto, era frio e com água suja. Logo de cara as três souberam que o hidrante precisaria ser substituído por repelente, a tática para afastar os milhões de mosquito e a temida malária. A comida, uma mistura de arroz, feijão e carne, tinha aparência indescritível. Luciane sentiu falta da pizza.
Como o grupo das médicas e da enfermeira era o segundo que chegava ao Haiti, o trabalho era de “rever a tragédia”. Elas tratavam a infecção das feridas há dias suturadas, arrumavam as cirurgias que não haviam dado certo, pensavam em outras formas de recuperação, amputavam membros.
Mas se Ellen, Celina e Luciane não precisaram “desbravar” o atendimento de saúde no Haiti, elas tiveram de dar conta de outro desafio. A “ficha” do Haiti já havia caído para todos. As mães já sabiam que a saudade dos filhos que não lograram sair dos escombros seria eterna. Os órfãos tinham de aceitar que os pais não estavam só dormindo. O tempo tinha passado, as doações já eram mais escassas e o mundo já havia começado a esquecer o Haiti.
Em meio a essa dificuldade, surge então o melhor remédio. Floresceu de um choro, dolorido e sincero. A médica Ellen estava no centro cirúrgico quando uma criança, muito ferida, chegou com medo das injeções que precisava tomar.
Os gritos suscitaram uma compaixão coletiva. Ellen, então, pegou o menino no colo e repetiu o que fez tantas vezes com seu filho quando bebê (técnica não esquecida, mesmo passados 18 anos).
A médica, relembrando os velhos tempos, começou a cantar uma canção de ninar (Frere Jacques, no caso). Cantarolou no ouvido da criança machucada por minutos. O menino, aos poucos, ficou mais calmo. Abriu um sorriso e aceitou a medicação. “Carinho de mãe é universal”, falou um haitiano, resumindo o que todos haviam pensado.
A canção virou praxe. Ellen cantava para crianças, Celina para adultos, Luciane para todo mundo. Os abraços entre profissionais de saúde e pacientes ficaram mais frequentes e a “canção remédio” virou procedimento oficial.
Passaram 15 dias, de muito trabalho e muita cantoria. As olheiras das médicas e da enfermeira já estavam mais visíveis. Estava na hora de voltar para casa e a decisão de partir, consideraram as três, foi muito mais difícil do que a de ir para o Haiti.
No último dia de trabalho, Celina, Ellen e Luciane abraçavam cada paciente. As mulheres haitianas, em resposta ao carinho, quiseram fazer trancinhas rastafári no cabelo das profissionais e elas toparam o novo visual. Foi a despedida que reuniu os momentos mais marcantes da “experiência terremoto”.
Elas viram nascer o sorriso no rosto de uma mulher que durante os 15 dias, não mexeu os olhos, não falou, quase não comeu. “Isso porque”, explicou Ellen, “ela havia ouvido os gritos do marido e do filho pedindo socorro enquanto estavam embaixo dos escombros”. O tempo passou, a ajuda não veio, os gritos pararam. “Aquela mulher não conseguiu salvar sua família e parecia ter morrido com eles”. No último dia, quando a médica estava indo embora, a paciente esboçou vida. “Ela pegou a minha mão e colocou no coração dela. Até ameaçou um sorriso”, conta.
Não foi a única expressão de gratidão. Celina, Ellen e Luciane, que tanto temeram a dificuldade no idioma, testemunharam o povo haitiano enrolar a língua, fazer esforço só para, em bom português, dizer “obrigado”.
Todas elas disseram que, em breve, vão voltar para o Haiti. Rejeitam o título de heroínas. Afirmam que são “só mulheres”. E mesmo com tantos afazeres que ficaram pendentes com a participação na missão, as três toparam parar o que estavam fazendo para conversar com o Delas. Isso porque o trabalho brasileiro e voluntário no país haitiano está ameaçado. Se as equipes continuarem sem patrocínio, outras mulheres como elas não terão chance de ser protagonistas de histórias pungentes como a de Celina, Luciane e Ellen.
Fernanda Aranda, iG São Paulo 08/03/2010
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